"E OS VELHOS SE APAIXONARÃO DE NOVO"
Rubem Alves
Meu amigo não chegou na hora marcada. Telefonou dizendo que estava num velorio. Chegou atrasado, sorridente. E me contou que fora no velório que lhe viera aquela felicidade. Pensei logo que o morto deveria ser seu inimigo. Não era. Um tio, muito querido, pessoa doce 82 anos. E ele me contou uma estória de um amor… Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente, dele se apossara.
O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência. Mas naqueles tempos havia uma outra Aids, chamada tuberculose, que se comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas, os apaixonados — esses eram os grupos de risco. Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve de ir em busca de ar puro, no alto das montanhas, sanatório, tal como Thomas Mann descreve em seu livro -”A montanha mágica”. Quem ia para tais lugares despedia-se com um “adeus”, um olhar de “nunca mais”. Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar antes do reencontro.
Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo, naquela casa, a alma por longe terra! Na vida daquela menina, que surda, perdida guerra… (Cecília Meireles).
Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o certo pelo duvidoso. Vale mais um negociante vivo que um tuberculoso morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza, que de longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez Amor nos tempos do cólera, que foi obrigada pelo pai a se casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um escriturário. Casou e com ele ficou até que, depois de 51 anos, veio a libertação… Como também o foi o amor de T.S. Eliot e Valerie. Todos eles amores de velhice…
Amor de mocidade é bonito, mas não é de espantar. Jovem tem mesmo é que se apaixonar. Romeu e Julieta é aquilo que todo mundo considera normal. Mas o amor na velhice é um espanto, pois nos revela que o coração não envelhee jamais. Pode até morrer, mas morre jovem. “O amor retribuido sempre rejuvenesce”, dizia Eliot, no vigor de sua paixão, aos 70 anos…
A estória que meu amigo contou era parecida com a do Florentino e da Firmina. Só que a espera foi muito maior. Amor de adolescencia interrompido – cada um seguindo seu caminho, diferentes, outros amores, familias. Mas o tempo não consegue apagar. A psicanálise acredita que no inconsciente não há tempo…Somos eternamente jovens.
Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos (ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo. Encontraram-se. E, de repente, eram namorados adolescentes de novo. Resolveram casar-se.
Os filhos protestaram. Eles, os filhos, todos os filhos, não suportam a idéia de que os velhos também têm sexo. Especialmente os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar estórias, devem tomar conta dos netos. Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina. Mais detalhes no livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice. E houve também aquela estória do programa Você decide: o velho pai, infeliz a vida inteira com a esposa, encontra uma mulher por quem se apaixona. A pergunta: ele deve ou não deve deixar a esposa para viver o novo amor? Você decide… A decisão do público — os filhos, evidentemente: “Não, ele não deve viver o novo amor…” Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais. Mas, na nossa estória, os dois velhos deram uma solene banana para os filhos e foram viver juntos em Poços de Caldas.
E de repente, já no crepúsculo, as árvores que todos julgavam secas começama soltar brotos, florescem. Viveram um ano de amor maravilhoso, e ele até começou a escrever poesia e voltou a tocar o violino que ficara por mais de 50 anos sobre um guarda roupa, porque a esposa não gostava de música de violino.Reaprendeu as antigas palavras de amor. Confessou ao sobrinho: “Se Deus me der dois anos de vida com esta mulher, minha vida terá valido a pena…” Bem que Deus quis. Mas o corpo não deixou.Não teve dois anos, teve um…e eu fiquei pensando que esse um ano pode ter sido semelhante àquelas eperiencias raras que a gente tem, e que fazem brotar, do fundo da alma, aquele grito de exultaão, a la Zorba: “Valeu a pena o Universo ter sido criado, só por causa disto!
E foi o mesmo que aconteceu com T.S.Eliot, que só encontrou o seu amor aos 68 anos, e aos 70 anos dizia que, antes do casamento, estava ficando velho. Mas agora se sentia mais jovem do que quando tinha 60.
O amor tem esse poder mágico de fazer o tempo correr ao contrário. O que envelhece não é o tempo. É a rotina, o enfado, a incapacidade de se comover ante o sorriso de uma mulher ou de um homem. Mas será incapacidade mesmo? Ou será uma outra coisa: que a sociedade inteira ensina aos velhos que o tempo do amor passou, que o preço de serem amados por seus filhos e netos é a renuncia aos seus sonhos de amor? Morreu de amor, como temia o Vinícius.
Compreendi a felicidade do meu amigo. E também fiquei feliz. Aquele velório foi como o acorde que se toca ao fim de uma sonata: a culminancia da felicidade.Interessante que , como regra, o movimento final das sonatas é um allegro. Para tras dos adagios lamentosos! A conclusão deve ser um orgasmo de alegria. E se eu pudesse eu acrescentaria aos textos sagrados, nos lugares onde os profetas tem visões de felicidade messianica, esta outra visão que eu penso até o proprio Deus aprovaria com um sorriso: “E os velhos se apaixonarão de novo…”
Começa aqui o novo final para a estória. Passaram-se semanas. Eram dez horas. Eu estava trabalhando no meu escritório. O telefone tocou. Voz aveludada de mulher do outro lado.
— É o professor Rubem Alves?
— Sim, respondi secamente. Eu sou sempre seco ao telefone.
— Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o título: ” …e os velhos se apaixonarão de novo”. O senhor já deve ter adivinhado quem está falando….
— Não, respondi. Por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou:
— Sou a viúva.
Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de 40 minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais… Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível! Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando — tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia… Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:
— Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vive de ternura!
O que me fez lembrar a observação de Kundera sobre a necessidade “de salvar o amor da tolice do sexualidade”. A sexualidade pertence à ordem da poesia. Abelardo e Heloisa se amaram até a morte.
-SERVAMARA-
Sonhos não envelhecem, e o sonho de amar e ser amado também não; amar independe da idade dos parceiros; depende da vontade, da escolha, de viver o novo momento que se descortina a sua frente; sem pressa, afobação da adolescência, nem cobranças, nem possessividades da mocidade.
O amor flui calmamente na terceira idade; os parceiros estão mais sábios, mais generosos, dispostos a ceder, compartilhar, e o melhor dispostos a viverem uma maravilhosa estória de amor, como nunca viveram antes.
Não importa se os filhos, os netos, a sociedade, não acreditem, e às vezes nem aprovem esse romance que surgiu no apagar das luzes, assim eles pensam; mas pra quem está vivendo as delícias do amor, eles só estão começando essa dança, onde eles estão dispostos a dançarem em qualquer ritmo.
Flhos criados, a elegria terem afagados os netos, a vida profssional estabilizada, dever cumprido!
Agora estão livres para viverem a doce magia do amor!
E quem vai impedi-los?
Com certeza tem a anuência do Senhor!
Os sonhos não envelhecem...O Senhor é quem mais sabe disso, aprova e junta os pombinhos!
Como realizou o sonho de Abraão e Sara, já na velhice, e os agraciou com o filho amado e tão esperado Isaque! Gn 21:1-7
E Ele também realizou o sonho de Caleb, e ele aos oitenta e cinco anos herdou a sua terra tão sonhada e aguardada: Hebron!
Deixo para vocês as palavras de Caleb de esperança, ânimo, força e alegria; e todos esses valores preciosos, independem da nossa idade biológica; e sim do nosso espírito jovial que sempre está disposto a inovar, amar, doar!
E agora eis que o SENHOR me conservou em vida, como disse; quarenta e cinco anos são passados, desde que o SENHOR falou esta palavra a Moisés, andando Israel ainda no deserto; e agora eis que hoje tenho já oitenta e cinco anos;
E ainda hoje estou tão forte como no dia em que Moisés me enviou; qual era a minha força então, tal é agora a minha força, tanto para a guerra como para sair e entrar.
Agora, pois, dá-me este monte de que o SENHOR falou aquele dia; pois naquele dia tu ouviste que estavam ali os anaquins, e grandes e fortes cidades. Porventura o SENHOR será comigo, para os expulsar, como o SENHOR disse.
E Josué o abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, a Hebrom em herança. Js 14:10-13
Amo este texto do Rubem.
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